sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Vestuário dos povos andinos

A tecelagem dos povos nativos americanos (no período pré-conquista européia) possuía um alto nível de qualidade e beleza, e o território mexicano foi o responsável, sem dúvida, por ter confeccionado tecidos esplêndidos. Podemos constatar isso pelos afrescos descobertos e por cenas de vasos, já que a umidade e o calor próprios do clima da região acabaram por desintegrar estes tecidos.
Vendo por esse aspecto, o território do Andes foi o mais favorecido, pois graças a areia do litoral seco do Pacífico, um repertório completo de modelos de tecelagem foi conservado nas sepulturas. Os indivíduos da alta categoria eram enterrados em trajes de cerimônias, depois de enrolados em tecidos que continham vasos e objetos que lhes tinham pertencido. O conjunto era ainda envolvido em um tecido de valor menor.

Os mais antigos tecidos - que se encontram na zona litoral - foram confeccionados no começo da era cristã e apresentam o mesmo grau de perfeição e a mesma variedade de técnicas dos que foram usados mais tarde. A única "evolução" que houve foi em relação ao estilo. Como matéria-prima usavam bastante o algodão, enquanto que nos planaltos andinos usavam mais o pelo de lhama, guanaco, alpaca e a vicunha, que forneciam uma lã muito resistente. A da vicunha, por exemplo, apresentava maciez e o brilho da seda. À da alpaca misturava-se muitas vezes ao algodão.

Esses tecidos eram feitos com uso dos teares - que se compunham habitualmente de um pau meio polido, fixo entre dois postes a uma árvore ou a um muro. A outra extremidade era terminada por um cinto, onde dessa forma o artesão podia esticar ou desapertar o aparelho. A largura desse tecido não podia ser muito maior que o comprimento do braço - ou seja, cerca de 75 centímetros.

Certas civilizações peruanas confeccionavam tecidos com mais de 1 metro e 50 centímetros de largura, supõe-se por isso que eles confeccionados em grandes teares ou que era trabalhado simultaneamente por várias pessoas. Era praticamente uma indústria têxtil! Escavações trouxeram à luz as seguintes variedades: brocado, crepe, damasco, gaze, cotim, veludo, tapeçarias murais de várias espécies, malha circular ou retilínea, voile, croisé e numerosas variedades de rendas e bordados. Para tingir eles usavam cores minerais, vegetais e animais.  

É no cemitério de Paracas, situado numa península a meio da costa do Peru, que  se encontram em suas jazidas mais ricas vestígios dos mais variados tecidos. Esses tecidos, ao que parece foi usado durante vários séculos como necrópole de personagens de alta categoria. Encontraram-se ali várias espécies de túmulos sobrepostos, até uma profundidade relativamente grande.  Vários tecidos das mais variadas formas foram encontradas em sepulturas, com diferenças claras no estilo e no motivo. Como as olarias, são classificadas segundo os lugares onde foram descobertos, os grupos de civilizações a que pertenciam, ou segundo os desenhos e motivos usados.

Apesar do Paul Westheim e do Pál Kelemen generalizarem e fazerem referência a um vestuário "pré-colombiano" podemos entender que boa parte do vestuário desses nativos americanos compunha-se de uma longa faixa de tecido enrolada em volta do dorso e rins, cujas extremidades ornamentadas caíam em pregas à frente; uma túnica cuidadosamente trabalhada, a que os espanhóis chamaram de poncho ou camisa; uma longa écharpe e um barrete ornado de motivos a condizer com os do vestuário. Encontraram-se também gigantescos xalés e chapéus. 

O que é importante destacar é que as vestes da aristocracia inca eram muito variadas, algumas são abstratas compostas de quadrados e de linhas que parecem degraus de escada e outras representam pássaros estilizados e silhuetas humanas. Empregavam de maneira engenhosa franjas, rosáceas, fios de lamés e também cobriam os tecidos com discos ou placas de metal e também com penas.

Esse processo manual é bastante comum no Peru. E ao andar pelas redondezas do Parque Nacional Manu, por exemplo, você ainda encontra senhoras que fabricam e vendem estes tecidos de lã bem coloridos. A lã é toda processada manualmente e  é utilizado ervas para produzir as cores para assim tingi-los antes de começar a tecer. A habilidade manual para fabricar estes tecidos é incrível e o seu trabalho é muito bem feito! 

Porém tem uma curiosidade que nem todos sabem: alguns tecidos são tingidos com urina fermentada para produzir algumas cores!



Bibliografia:

WESTHEIM, Paul; KELEMEN, Pál. Arte Ibero Americana. Lisboa: Editorial Verbo, 1971.



Antropologia e arte indígena

Quando nos propomos a pensar a arte indígena devemos levar em consideração a proximidade da História da arte com a Antropologia, é a partir desse segundo campo que se pode pensar a cultura do que eles caracterizam como povos não-ocidentais ou primitivos (CARDOSO, 2009).

Aprende-se, nos livros didáticos nas escolinhas e, bem depois, no ensino médio, uma ideia muito estereotipada do índio ou dos índios. Divulgou-se sempre uma imagem dos povos indígenas como homogênea, sem muita diferença do ponto de vista fisionômico, anatômico e cultural. Ou seja, como se todos venerassem um único e mesmo deus, uma mesma crença ou ritual. A diversidade cultural e de formas de vivências eram características desses povos.

Segundo Vidal as manifestações simbólicas estéticas para a compreensão da vida em sociedade das tribos brasileira sofrem o não reconhecimento de seu valor até a década de 1960, momento que recebe “impulso em bases teóricas e metodológicas renovadoras, levando paulatinamente, a uma formulação mais ampla em nível da pesquisa, do ensino, da organização do material visual nos acervos e museus, das exposições, dos recursos audiovisuais e das publicações específicas” (VIDAL, 2000, p. 13).


Geertz (1997), lembra que é difícil falar de arte, pois a arte parece existir em um mundo próprio, que o discurso não pode alcançar. De outra parte, a compreensão da arte revela, também, as suas consequências:


Em quase todo o mundo, fala-se da arte em termos que poderíamos chamar de artesanais – progressões de tonalidades, relações entre as cores, ou formas prosódicas. Esta tradição é ainda mais comum no Ocidente, onde temas como harmonia ou composição pictórica desenvolveram-se de tal forma que passaram a ser considerados como ciências menores e onde o movimento moderno, orientado para um formalismo estético cujo melhor representante no momento seria o estruturalismo, ou para os vários tipos de semiótica que buscam seguir-lhe os passos, não são senão uma tentativa de generalizar esta maneira de ver a arte, tornando-a mais abrangente, e elaborando uma linguagem técnica capaz de expressar as relações internas entre mitos, poemas, danças ou melodias em termos de abstratos e permutáveis (GEERTZ, 1997, p. 144).

O sentimento de um indivíduo e o sentimento que um povo tem pela vida pode ser transmitido pela arte, mas não é transmitido unicamente por meio da arte, mas, surgem vários outros segmentos da cultura deste povo: na religião, na moralidade, na ciência, no comércio, na tecnologia, na política, nas formas de lazer, de direito e na organização da vida prática e cotidiana.

Discursos sobre arte que não sejam meramente técnicos ou espiritualizações do técnico [...] têm, como uma de suas funções principais, buscar um lugar para a arte no contexto das demais expressões dos objetivos humanos, e dos modelos de vida a que essas expressões, em seu conjunto, dão sustentação (GEERTZ, 1997, p. 145).

A proximidade da Antropologia com a História da Arte possibilita essa nova perspectiva sobre a arte, no qual ela pode ser visto dentro de contexto histórico, social e cultural. É somente nessa nova concepção que arte indígena é objeto de estudo.


Bibliografia:

CARDOSO, R. A história da arte e outras histórias. In: Cultura Visual, n. 12, outubro/2009,
Salvador: EDUFBA, p. 105-113.
GEERTZ, C. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
VIDAL, L. (org). Grafismo indígena: estudos de antropologia estética. 2. ed. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP: Ed da Universidade de São Paulo, 2000.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Revisitando a arte dos Astecas e dos Maias


As civilizações mais avançadas da América Central foram a maia e a asteca. Os maias  estabeleceram-se ao norte da península de Yucatán e construíram várias cidades santuários, enquanto os astecas se estabeleceram nas ilhotas do lago de Texcoco, onde edificaram a capital de seu império, Tenochtitlán. O império maia teve uma organização estatal e social bem-definida, nas quais se diferenciavam classes sociais e profissões. Foi essa mesma organização que os beligerantes astecas adaptaram ao chegar ao vale do México. Os mais desenvolvidos cientificamente e intelectualmente foram os maias: possuíam um sistema de escrita hieroglífica e atingiram grandes avanços na astronomia e na matemática. Seu calendário de 365 dias revelou-se mais exato que o utilizado então na Europa. Além disso, já conheciam o zero. Parte de seus conhecimentos foi absorvida pelos toltecas, que por sua vez os transmitiram para o resto das culturas do vale do México e para os astecas, que conseguiram vencer as cidades da Tríplice Aliança e estabeleceram assim seu império.




       ESCULTURA        


Para os maias, a estatuária deveria ser imagem e semelhança da realidade. Em suas esculturas é possível identificar as características físicas do povo, e em muitos casos existiu até um afã de individualização dos rostos ou de sentimentos, embora persistindo a esquematização. Ao contrário dos astecas, as formas maias são mais suaves e arredondadas e mais estilizadas. A escultura colossal é muito comum como complemento de templos e palácios, sobretudo a figura do Chac Mool, ou mensageiro sentado.São significativos os baixos-relevos dos templos, nos quais os artistas maias combinaram figuras naturalistas com fundos geométricos acompanhados de textos em hieróglifos, não tão abstratos como os egípcios, mas igualmente informativos, do estilo das gravações de estelas comemorativas. Não menos perfeitas foram as gravuras sobre madeira das portas e seus respectivos dintéis. A estatuária asteca era de um simbolismo profundo e de uma linguagem tendente à abstração, que negava todo naturalismo. Sua função era eminentemente religiosa, motivo por que as figuras representadas eram normalmente deuses acompanhados de seus atributos. Os materiais mais utilizados eram a pedra - andesita e pórfido - e a terracota. O deus mais importante era Quetzalcoatl, representado como homem ou serpente emplumada, já conhecido pelos antecessores dos astecas, os toltecas.




Calendário asteca-Museu de Arqueologia e História, Madri.




Relevo de um sacerdote oferecendo um sacrifício (arte maia)-Museu Nacional de Antropologia, México.






           PINTURA         


No ano de 1946 foi descoberta Bonampak, uma construção maia de três salas, ou câmaras, cobertas de pinturas murais coloridas. Essas pinturas chegaram quase intactas até o século XX, não só pelo fato de terem permanecido longe da vista dos espanhóis, mas também por terem ficado protegidas por uma fina camada de calcário, depositada naturalmente sobre sua superfície. Longe de toda abstração simbólica, esses murais apresentam-se impregnados de figuras representativas de um determinado momento histórico. Cada parede representa uma cena, narrada com riqueza de detalhes. É surpreendente o contraste deliberado de cores, bem como sua grande variedade: as preferidas eram o vermelho e suas diferentes tonalidades, o amarelo, o azul e o verde. A perspectiva é obtida pelas superposições e escorços das figuras. Os rostos possuem traços individualizados. O conjunto apresenta os contornos acentuados. A pintura asteca, ao contrário, manteve-se como complemento de relevos e teve um caráter simbólico. A ausência de um sistema preestabelecido de escrita, como a dos maias, transmitiu tanto aos desenhos como às cores da pintura asteca uma simbologia comparável à dos hieróglifos egípcios, e influiu na almejada abstração. Sabe-se que, a partir da conquista espanhola, os astecas passaram a produzir pinturas de gosto europeu para os conquistadores, e foram de fato excelentes copistas. Conservam-se também manuscritos e cópias de livros com iluminuras, encomendados pelas cortes européias.


A privilegiada classe sacerdotal era encarregada de predizer as condições climáticas e tinha o domínio das ciências e tecnologia. (Arte maia)






Os afrescos de Bonampak são o único testemunho da arte pictórica maia. Sua paletada colorida e o naturalismo da representação humana falam de uma cultura sofisticada.(Arte maia) 




     ARQUITETURA   


Os templos e palácios das civilizações maia e asteca refletem os conhecimentos técnicos de seus construtores e artesãos. Os templos maias, principalmente os do período clássico, denotam a influência dos toltecas. Os templos astecas tinham bases quase quadrangulares que, superpostas, davam forma a pirâmides escalonadas, coroadas por uma plataforma, com a correspondente pedra de sacrifícios. A decoração, com figuras de deidades antropomórficas e animais simbólicos, completava o quadro. Os arquitetos maias, por sua vez, implementaram certos elementos novos que, junto com um avanço tecnológico, implicaram uma diferenciação estilística: construíram seus tetos com as chamadas abóbadas falsas ou salientes, formadas pela superposição de silhares de pedra. Quanto à decoração, utilizaram o estuque de cal para fazer molduras entre tetos e paredes, que cobriam com baixos-relevos, como no templo de bambu, em Chiapas, de acentuada extravagância. As residências palacianas maias, como o palácio de Uxmal, possuíam galerias dispostas em forma de quadrado numa plataforma. Entrava-se no palácio por uma escadaria colossal situada na frente das aberturas da galeria central. Há poucos detalhes dos palácios astecas, já que eles foram praticamente destruídos. Sabe-se, pelas crônicas e pelo estudo de algumas ruínas, que o palácio de Montezuma, o soberano asteca, tinha base retangular, com pátios abertos no seu interior e duas construções. A cidade de Tecnochtitlán, segundo as crônicas dos conquistadores, foi construída numa grande ilhota, no meio do lago. Para se comunicar com terra firme, os astecas construíram um sistema de vias aquáticas e terrestres. Também fizeram aquedutos, para dispor de água potável. Os maias raramente moravam em suas cidades-santuários, preferindo o campo. Em tempos mais recentes, no período clássico, influenciados pelos imigrantes toltecas, começaram a construir edifícios civis e governamentais e o indispensável estádio de jogo de bola.


Por este arco de pedra é que se fazia passar a bola de borracha, tarefa difícil na qual se utilizavam somente cotovelos, ombros e joelhos. Este jogo de caráter estritamente religioso podia inclusive terminar com o sacrifício dos participantes.



As pirâmides e as torres escalonadas são a expressão arquitetônica fundamental destes povos. Em seu topo eram realizados sacrifícios e as oferendas aos deuses. (pirâmide do Adivinho, Yucatán)




As construções astecas eram mais monumentais que as maias, como se pode observar nesta pirâmide do Sol. Localizada em Teotihuacán, antiga capital dos toltecas, passou depois para as mãos dos astecas, que a transformaram num importante centro social e religioso.


Arte dos indígenas brasileiros: a concepção de Graça Proença


A professora Maria das Graças Vieira Proença dos Santos, é licenciada em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Sorocaba e em Letras pela Universidade de São Paulo. Curso de Pós-Graduação em Estética no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.

Uma arte utilitária

A Primeira questão que se coloca em relação à arte indígena é defini -la ou caracterizá la entre as muitas atividades realizadas pelos índios. Quando dizemos que um objeto indígena tem qualidades artísticas, podemos estar lidando com conceitos que são próprios da nossa civilização, mas estranhos ao índio. Para ele, o objeto precisa ser mais perfeito na sua execução do que sua utilidade exigiria. Nessa perfeição para além da finalidade é que se encontra a noção indígena de beleza. Desse modo, um arco cerimonial emplumado, dos Bororo, ou um escudo cerimonial, dos Desana podem ser considerados criações artísticas porque são objetos cuja beleza resulta de sua perfeita realização.

Outro aspecto importante a ressaltar: a arte indígena é mais representativa das tradições da comunidade em que está inserida do que da personalidade do indivíduo que a faz. É por isso que os estilos da pintura corporal, do trançado e da cerâmica variam significativamente de uma tribo para outra.


O período pré-cabralino: a fase Marajoara e a cultura Santarém

A Ilha de Marajó foi habitada por vários povos desde, provavelmente, 1100 a.C. De acordo com os progressos obtidos, esses povos foram divididos em cinco fases arqueológicas. A fase Marajoara é a quarta na sequência da ocupação da ilha, mas é sem dúvida a que apresenta as criações mais interessantes.


A fase Marajoara

A produção mais característica desses povos foi a cerâmica, cuja modelagem era tipicamente antropomorfa. Ela pode ser dividida entre vasos de uso doméstico e vasos cerimoniais e funerários. Os primeiros são mais simples e geralmente não apresentam a superfície decorada. Já os vasos cerimoniais possuem uma decoração elaborada, resultante da pintura bicromática ou policromática de desenhos feitos com incisões na cerâmica e de desenhos em relevo.

Dentre os outros objetos da cerâmica marajoara, tais como bancos, colheres, apitos e adornos para orelhas e lábios, as estatuetas representando seres humanos despertam um interesse especial, porque levantam a questão da sua finalidade. Ou seja, os estudiosos discutem ainda se eram objetos de adorno ou se tinham alguma função cerimonial. Essas estatuetas, que podem ser decoradas ou não, reproduzem as formas humanas de maneira estilizada, pois não há preocupação com uma imitação fiel da realidade. A fase Marajoara conheceu um lento, mas constante declínio e, em torno de 1350, desapareceu, talvez expulsa ou absorvida por outros povos que chegaram à Ilha de Marajó.




Fig. 1. URNA FUNERÁRIA

400 a 1400 A.D.

Cerâmica Marajoara; Ilha de Marajó; 53 cm

Com pintura em vermelho sobre fundo branco, apresenta o corpo profusamente decorado pela técnica da excisão, com variações em torno da figura humana estilizada e de motivos geométricos. Urnas funerárias elaboradas como esta, em geral contendo objetos de prestígio em seu interior, provavelmente destinaram-se a indivíduos de status social diferenciado na sociedade Marajoara.



 





Fig. 2. ESTATUETA FEMININA OCA EM FORMA DE FALO
  400 a 1400 A.D. Cerâmica Marajoara; Ilha de Marajó; 23,5 cm
 
Esta peça da Coleção Amazônica do Setor de Arqueologia sintetiza em uma mesma representação da figura humana os princípios feminino e masculino, um aspecto que pela sua recorrência parece ter tido particular relevância na cosmologia Marajoara. Apresenta o tronco e os membros inferiores recobertos de pintura corporal em motivos geométricos, na cor vermelha sobre fundo branco, com duas pequenas alças laterais e uma reentrância no pescoço para amarração e suspensão.



Fig. 3. TANGAS - 400 a 1400 A.D.

Cerâmica Marajoara; Ilha de Marajó; Altura média das três peças entre 11 e 12 cm

Pintadas em vermelho e preto sobre fundo branco, estes tapa-sexos femininos eram modelados individualmente, acompanhando a anatomia pubiana de suas portadoras. Padrões geométricos, muitos deles correspondendo a representações estilizadas da figura humana, preenchem seus quatro campos decorativos, que em alguns exemplares são reduzidos a apenas três. Enquanto a faixa superior varia pouco, a seguinte e também a inferior apresentam maior variabilidade. O campo central, maior, não se repete nunca. Apresentam em cada uma das extremidades orifícios para amarração, muitos deles desgastados pelo uso.
 


Fig. 4. PEÇA ANTROPOMORFA EM FORMA DE FALO

400 a 1400 A.D.

Cerâmica Marajoara Ilha de Marajó 13 cm

O corpo e a cabeça, que apresenta as típicas sobrancelhas em T, foram decorados com motivos geométricos feitos com a técnica da excisão.









 
Cultura Santarém

Não existem estudos dividindo em fases culturais os povos que ao longo do tempo habitaram a região próxima à junção do Rio Tapajós com o Amazonas, como foi feito em relação aos povos que ocuparam a Ilha de Marajó. Todos os vestígios culturais encontrados ali foram considerados como realização de um complexo cultural denominado "cultura Santarém".


A cerâmica santarena apresenta uma decoração bastante complexa, pois além da pintura e dos desenhos, as peças apresentam ornamentos em relevo com figuras de seres humanos ou animais.




Fig. 5. VASO ANTROPOMORFO REPRESENTANDO UM HOMEM SENTADO



Cerca de 1.000 a 1.400 A.D.

Cerâmica Santarém; Pará; 34 cm

A postura corporal, os lóbulos perfurados e outros ornamentos sugerem que este indivíduo que apresenta os membros atrofiados, especialmente os inferiores, tenha tido uma posição social diferenciada. Peça restaurada, com falo fraturado e ausente.











Figs. 6-7. CABEÇA DE ESTATUETA ANTROPOMORFA FEMININA

Cerca de 1.000 a 1.400 A.D.

Cerâmica Santarém; Pará 17 cm.

Com olhos fechados em forma de grãos de café, típicos da cultura Santarém, esta cabeça, que foi destacada do seu corpo, apresenta vários atributos: além de adornos auriculares, seu cabelo foi cuidadosamente penteado e ela porta um elaborado toucado constituído por um cobre-nuca e uma grinalda ornada com três cabeças de morcego de cada lado. Apresenta orifícios circulares nas narinas e nos ouvidos.

Um dos recursos ornamentais da cerâmica santarena que mais chama a atenção é a presença de cariátides, isto é, figuras humanas que apoiam a parte superior de um vaso. 




Figura 8 - Vaso de Cariátides – Acervo MPEG Foto: João Aires da Fonseca


Figura 9 - Vaso de Gargalo – Acervo MPEG . Foto: João Aires da Fonseca

Além de vasos, a cultura Santarém produziu ainda cachimbos, cuja decoração por vezes já sugere a influência dos primeiros colonizadores europeus, e estatuetas de formas variadas. Diferentemente das estatuetas marajoaras, as da cultura Santarém apresentam maior realismo, pois reproduzem mais fielmente os seres humanos ou animais que representam.


A cerâmica santarena refinadamente decorada com elementos em relevo perdurou até a chegada dos colonizadores portugueses. Mas, por volta do século XVII, os povos que a realizavam foram perdendo suas peculiaridades culturais e sua produção acabou por desaparecer. 



As culturas indígenas
Apesar de terem existido muitas e diferentes tribos, é possível identificar ainda hoje duas modalidades gerais de culturas indígenas: a dos silvícolas, que vivem nas áreas florestais, e a dos campineiros, que vivem nos cerrados e nas savanas.

Os silvícolas têm uma agricultura desenvolvida e diversificada que, associada às atividades de caça e pesca, proporciona lhes uma moradia fixa. Suas atividades de produção de objetos para uso da tribo também são diversificadas e entre elas estão a cerâmica, a tecelagem e o trançado de cestos e balaios.

Já os campineiros têm uma cultura menos complexa e uma agricultura menos variada que a dos silvícolas. Seus artefatos tribais são menos diversificados, mas as esteiras e os cestos que produzem estão entre os mais cuidadosamente trançados pelos indígenas.

É preciso não esquecer que tanto um grupo quanto outro conta com uma ampla variedade de elementos naturais para realizar seus objetos: madeiras, caroços, fibras, palmas, palhas, cipós, sementes, cocos, resinas, couros, ossos, dentes, conchas, garras e belíssimas plumas das mais diversas aves. Evidentemente, com um material tão variado, as possibilidades de criação são muito amplas, como por exemplo, os barcos e os remos dos Karajá, os objetos trançados dos Baniwa, as estacas de cavar e as pás de virar beiju dos índios xinguanos.

A tendência indígena de fazer objetos bonitos para usar na vida tribal pode ser apreciada principalmente na cerâmica, no trançado e na tecelagem. Mas ao lado dessa produção de artefatos úteis, há dois aspectos da arte índia que despertam um interesse especial. Trata se da arte plumária e da pintura corporal, que veremos mais adiante. 



 A arfe do trançado e da tecelagem
A partir de uma matéria prima abundante, como folhas, palmas, cipós, talas e fibras, os índios produzem uma grande variedade de cestos, abanos e redes. Da arte de trançar e tecer, Darcy Ribeiro destaca especialmente algumas realizações indígenas como as vestimentas e as máscaras de entrecasca, feitas pelos Tukuna e primorosamente pintadas; as admiráveis redes ou maqueiras de fibra de tucum do Rio Negro; as belíssimas vestes de algodão dos Paresi que também, lamentavelmente, só se podem ver nos museus.

 
Cerâmica
As peças de cerâmica que se conservaram testemunham muitos costumes dos diferentes povos índios e uma linguagem artística que ainda nos impressiona. São assim, por exemplo, as urnas funerárias lavradas e pintadas de Marajó, a cerâmica decorada com desenhos impressos por incisão dos Kadiwéu, as panelas zoomórficas dos Waurá e as bonecas de cerâmica dos Karajá. 


Plumária
Esta é uma arte muito especial porque não está associada a nenhum fim utilitário, mas apenas à pura busca da beleza. Existem dois grandes estilos na criação das peças de plumas dos índios brasileiros. As tribos dos cerrados fazem trabalhos majestosos e grandes, como os diademas dos índios Bororo ou os adornos de corpo, dos Kayapó.

As tribos silvícolas como a dos Munduruku e dos Kaapor fazem peças mais delicadas, sobre faixas de tecidos de algodão. Aqui, a maior preocupação é com o colorido e a combinação dos matizes. As penas geralmente são sobrepostas em camadas, como nas asas dos pássaros. Esse trabalho exige uma cuidadosa execução. 



Máscaras
Para os índios, as máscaras têm um caráter duplo: ao mesmo tempo que são um artefato produzido por um homem comum, são a figura viva do ser sobrenatural que representam Elas são feitas com troncos de árvores, cabaças e palhas de buriti e são usadas geralmente em danças cerimoniais, como, por exemplo, na dança do Aruanã, entre os Karajá, quando representam heróis que mantêm a ordem do mundo. 


A pintura corporal
As cores mais usadas pelos índios para pintar seus corpos são o vermelho muito vivo do urucum, o negro esverdeado da tintura do suco do jenipapo e o branco da tabatinga. A escolha dessas cores é importante, porque o gosto pela pintura corporal está associado ao esforço de transmitir ao corpo a alegria contida nas cores vivas e intensas.

São os Kadiwéu que apresentam uma pintura corporal mais elaborada Os primeiros registros dessa pintura datam de 1560, pois ela impressionou fortemente o colonizados e os viajantes europeus. Mais tarde foi analisada também por vários estudiosos, entre os quais Lévi Strauss, antropólogo francês que esteve entre os índios brasileiros em 1935. De acordo com Lévi Strauss:

(...)as pinturas do rosto conferem, de início, ao indivíduo, sua dignidade de ser humano; elas operam a passagem da natureza à cultura, do animal estúpido ao homem civilizado. Em seguida, diferentes quanto ao estilo e à composição segundo as castas, elas exprimem, numa sociedade complexa, a hierarquia dos status. Elas possuem assim uma função sociológica. (apud, SANTOS, 2007, p. 129)

Os desenhos dos Kadiwéu são geométricos, complexos e revelam um equilíbrio e uma beleza que impressionam o observador. Além do corpo, que é o suporte próprio da pintura Kadiwéu, os seus desenhos aparecem também em couros, esteiras e abanos, o que faz com que seus objetos domésticos sejam inconfundíveis. 

REFERÊNCIAS:
Figuras de 1 à 7. Acesso em: http://www.museunacional.ufrj.br/
Figuras 8 e 9. Acesso em: 

SANTOS, Maria das G. V. P. dos. História da Arte. São Paulo: Ática, 2007.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A arte de performance dos índios

A antropóloga Regina Polo Müller (2008) defende a existência de uma arte indígena, aproximando-a dos valores e concepções da arte contemporânea. Se pensarmos segundo preceitos da Renascença ao Iluminismo de arte como “domínio autônomo de julgamento humano” e como “um fim em si mesmo” a cultura indígena não poderia produzir arte. No entanto, aproximando a concepção de arte contemporânea dirige seu interesse às práticas artísticas de sociedades indígenas por seu caráter integrado nos diversos domínios da vida social e sua natureza múltipla, ativa, participante e coletiva.

A noção de agência, a partir da qual se entende que nas artes indígenas, objetos e demais manifestações expressivas são mais para provocarem estados e processos de conhecimento e reflexividade bem como transformações sociais ou ontológicas do que para serem contempladas, vem mais diretamente auxiliar no estabelecimento de analogias com as manifestações da arte conceitual e da arte da performance e, desse modo, contribuir para explorarmos a ideia de contemporaneidade na arte indígena.

Para relacionar ritual e arte da performance a autora privilegia a situação de dialogia e o caráter processual/experiencial presentes em ambos. Do caráter processual/experiencial, ela destaca a reflexividade inerente à performance em geral “cultural”, para cotejar à prática reflexiva definidora, por exemplo, da contemplação do ambiental.

Esses conceitos são exemplificados pela autora no ritual cosmogônico das flautas Turé, no qual, os personagens incorporados na ação performática, desenvolvida pelas danças e cerimônias, são o morto e o matador, dos scripts dos mitos de origem. Os tocadores desempenham a função de executar a música (tocando e dançando) que, juntamente com o choro ritual, afastam os mortos para sempre da vida dos vivos, garantindo a ordem cósmica de separação e convivência entre seres diferentes.

O cortejo liderado pelo personagem/papel ritual do Kavara, tocador de flauta, que se inicia na casa dos visitantes tocadores de flauta, dirige-se à casa comunal e retorna à casa dos visitantes, pode ser interpretado como a transmutação simbólica do guerreiro (o matador) para o representante do morto (o sobrevivente Kavara), sintetizando, na ação performática, um princípio da cosmologia e ontologia Asuriní.

No ritual, o guerreiro é tatuado e o morto é chorado. A tatuagem separa substancialmente o matador da vítima, com a extração do sangue de seu corpo e o choro ritual sobre a sepultura, separa cosmicamente o morto e o vivo. A ação ritual – cortejos, danças e ritos cerimoniais – que se desenvolve entre a casa comunal e a casa dos visitantes realiza, de um lado, a passagem entre esferas cósmicas e os estados ontológicos e, de outro, estabelece relações entre estes níveis: vivos e mortos, humanos e espíritos, Asuriní atuais e ancestrais.

As imagens que seguem são para exemplificar um dos diversos rituais do turé, não é o do povo Asuríni que a antropóloga exemplificou e sim do povo Caxiri, mas possibilita perceber as características dessa conceito de arte de performance que Müller desenvolve.

Preparação do Turé:
http://oiapoque.museudoindio.gov.br/exposicao/ture/video-preparacao/

Dança do Turé:
http://oiapoque.museudoindio.gov.br/exposicao/ture/video-danca/



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
MÜLLER, Regina Polo. A arte dos índios e a arte contemporânea. Ciência e Cultura. vol.60 no.4. São Paulo Oct. 2008. p. 40-44.

O Canto da Gente de Verdade

"Gente de Verdade" - esse é o significado de inuíte ou inuit, que é como os nativos do Alaska preferem ser chamados em vez de "esquimós" (que significa comedores de foca, ou  índios, depende do dicionário).

A Penelope Eckert e Russel Newmark (1980) discutem os duelos realizados pelos inuits com base em 17 de seus cantos recolhidos por Kund Rasmussen nos anos 1920, no norte do Canadá, a oeste da baía de Hudson. Apesar de outros autores terem admitido que este tipo de duelo era um instrumento jurídico para resolver disputas e restaurar as relações normais entre os membros da comunidade, ou compelia a conformidade às regras sociais, ou ainda fazia a catarse das pressões e frustrações, Eckert e Newmark o consideram de outra maneira: era um dos meios de lidar com os conflitos interpessoais, mas não eliminava as causas e os efeitos deles decorrentes, antes reestabelecia a ambigüidade estável das relações entre os indivíduos envolvidos. Dentro de um esquema ritual, o duelo reconciliava forças contraditórias e ambiguidades centrais na vida dos inuits (ECKERT; NEWMARK, 1980. p. 191).

Os duelos com cantos ocorriam no escuro do inverno, nos festivais realizados na grande casa construída para esses eventos, em meio a danças e jogos, após os participantes terem comido bastante e à luz de lâmpadas de óleo. Um dos contendores se adiantava e iniciava seu canto, dançando e batendo um grande tambor de couro de caribu. Seu canto dirigia-se ao oponente, mas também tinha por alvo envolver e excitar os demais presentes. 

Os contendores alternavam seus cantos, que continham mútuos insultos e acusações, e ao mesmo tempo cada qual fazia alarde de seu próprio bom caráter, tudo acomodado em humor e recursos retóricos. Comportavam-se assim de um modo totalmente reprovado nas relações quotidianas.

O duelo continuava até que um dos contendores sentia-se completamente humilhado pelos risos da audiência ou tão confuso que era incapaz de responder. A expectativa da platéia era que os oponentes abandonassem seus maus sentimentos, rissem de suas animosidades e restabelecessem uma relação amigável (ECKERT; NEWMARK, 1980. p. 192).

O objetivo do duelo não era pôr em evidência a culpa de um e a inocência do outro contendor, pois suas desavenças decorriam das pressões contraditórias da vida inuit, que impunham simultaneamente a cooperaração e a competição. Apesar do valor atribuído à paciência, pacifismo, coragem, generosidade, modéstia, honestidade, cooperação - a violência permeava muitos aspectos da vida inuit, exemplificados, segundo os autores, pelo suicídio, senilicídio, assasinato, infanticídio feminino. 

Os autores oferecem alguns números para indicar as altas taxas de mortes violentas. Segundo eles, o infanticídio de recém-nascidos do sexo feminino criava um desequilíbrio que resultava em intensa competição por mulheres. Mas sabemos de outros autores que, mesmo desse jeito, o número de mulheres sempre superava o número de homens, por causa das inúmeras mortes destes, não somente por violência, mas também por acidentes, principalmente nos caiaques. 

Lembram ainda a competição engendrada pela escassez de recursos alimentares (ECKERT; NEWMARK, 1980. p. 193-195). Os autores lembram que a ameaça de conflito, e morte violenta, estava sempre presente, desde as relações com estranhos, marcadas por intenso medo, desconfiança e suspeita, passando pelas relações com parceiros (de caçada, de partilha de alimentos, de transmissão de nomes), dada a possibilidade de as relações jocosas, se excessivas, resultarem em desentendimentos, até as relações dentro da família, no seio da qual, entre outros motivos, a mulher podia instigar o homem pretendido a matar-lhe o marido, ou o filho matar o padrasto para vingar a morte do pai, assassinado por aquele (ECKERT; NEWMARK, 1980. p. 195-197).

Uma alternativa para as soluções violentas, era o duelo com cantos, em que um acusava o outro baseado em temas como a "hostilidade, avidez, inveja, preguiça, furto, pretensão, imodéstia, excesso sexual", enquanto faz seu auto-elogio, destacando sua boa natureza, modéstia, habilidade na caça, e suas boas intenções. Tal confronto seria totalmente desastroso, não fosse o ambiente ritual, festivo e cheio de humor em que ocorria, ou seja, isolado do contexto quotidiano. 

Também o trazer a audiência para seu lado era um recurso do cantor para não atuar como único acusador. Além do mais, apesar de contundente, a acusação se apresentava dentro de um ambiente de ambiguidade, em que a platéia podia estar se colocando a favor de uma das partes ou simplesmente apreciando o desempenho artístico; os ataques e contra-ataques podiam ser expressos em termos irônicos, permitindo assim serem interpretados como verdadeiros ou não. Os autores exemplificam os recursos retóricos utilizados pelos contendores transcrevendo trechos dos cantos anotados por Rasmussen (ECKERT; NEWMARK, 1980. p. 197-207). Enfim, o duelo restaurava a estabilidade da ambiqüidade, sempre passível de voltar a desequilibrar-se (ECKERT; NEWMARK, 1980. p. 208-209).


Rachel Attituq Qitsualik dirá:
O cosmos inuíte não é governado por ninguém. Não há uma figura divina seja maternal ou paternal. Não há deuses criadores do vento ou do Sol. Não há punição eterna na vida futura, assim como não há punição para crianças ou adultos na vida presente. Os inuítes acreditam que todas as coisas tem um tipo de espírito ou alma (em língua inuit: anirniq - respiração; plural anirniit) e não apenas os humanos. Estes espíritos continuam a existir após a morte. Como precisam comer animais e plantas existe um dito comum entre os inuítes: "O grande perigo de nossa existência repousa no fato de que nossa dieta consiste inteiramente de almas". Acreditando que todos as coisas tem uma alma, matar um animal não é muito diferente de matar uma pessoa. Uma vez que a alma do animal ou humano é liberada ela está livre para se vingar. Os espíritos dos mortos só podem ser aplacados pela obediência aos costumes, evitando os tabus e executando os rituais apropriados.

Ao pesquisar sobre o duelo de cantos inuíte, encontramos os seguintes vídeos feitos pelos dessendentes dessa cultura: