quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O Canto da Gente de Verdade

"Gente de Verdade" - esse é o significado de inuíte ou inuit, que é como os nativos do Alaska preferem ser chamados em vez de "esquimós" (que significa comedores de foca, ou  índios, depende do dicionário).

A Penelope Eckert e Russel Newmark (1980) discutem os duelos realizados pelos inuits com base em 17 de seus cantos recolhidos por Kund Rasmussen nos anos 1920, no norte do Canadá, a oeste da baía de Hudson. Apesar de outros autores terem admitido que este tipo de duelo era um instrumento jurídico para resolver disputas e restaurar as relações normais entre os membros da comunidade, ou compelia a conformidade às regras sociais, ou ainda fazia a catarse das pressões e frustrações, Eckert e Newmark o consideram de outra maneira: era um dos meios de lidar com os conflitos interpessoais, mas não eliminava as causas e os efeitos deles decorrentes, antes reestabelecia a ambigüidade estável das relações entre os indivíduos envolvidos. Dentro de um esquema ritual, o duelo reconciliava forças contraditórias e ambiguidades centrais na vida dos inuits (ECKERT; NEWMARK, 1980. p. 191).

Os duelos com cantos ocorriam no escuro do inverno, nos festivais realizados na grande casa construída para esses eventos, em meio a danças e jogos, após os participantes terem comido bastante e à luz de lâmpadas de óleo. Um dos contendores se adiantava e iniciava seu canto, dançando e batendo um grande tambor de couro de caribu. Seu canto dirigia-se ao oponente, mas também tinha por alvo envolver e excitar os demais presentes. 

Os contendores alternavam seus cantos, que continham mútuos insultos e acusações, e ao mesmo tempo cada qual fazia alarde de seu próprio bom caráter, tudo acomodado em humor e recursos retóricos. Comportavam-se assim de um modo totalmente reprovado nas relações quotidianas.

O duelo continuava até que um dos contendores sentia-se completamente humilhado pelos risos da audiência ou tão confuso que era incapaz de responder. A expectativa da platéia era que os oponentes abandonassem seus maus sentimentos, rissem de suas animosidades e restabelecessem uma relação amigável (ECKERT; NEWMARK, 1980. p. 192).

O objetivo do duelo não era pôr em evidência a culpa de um e a inocência do outro contendor, pois suas desavenças decorriam das pressões contraditórias da vida inuit, que impunham simultaneamente a cooperaração e a competição. Apesar do valor atribuído à paciência, pacifismo, coragem, generosidade, modéstia, honestidade, cooperação - a violência permeava muitos aspectos da vida inuit, exemplificados, segundo os autores, pelo suicídio, senilicídio, assasinato, infanticídio feminino. 

Os autores oferecem alguns números para indicar as altas taxas de mortes violentas. Segundo eles, o infanticídio de recém-nascidos do sexo feminino criava um desequilíbrio que resultava em intensa competição por mulheres. Mas sabemos de outros autores que, mesmo desse jeito, o número de mulheres sempre superava o número de homens, por causa das inúmeras mortes destes, não somente por violência, mas também por acidentes, principalmente nos caiaques. 

Lembram ainda a competição engendrada pela escassez de recursos alimentares (ECKERT; NEWMARK, 1980. p. 193-195). Os autores lembram que a ameaça de conflito, e morte violenta, estava sempre presente, desde as relações com estranhos, marcadas por intenso medo, desconfiança e suspeita, passando pelas relações com parceiros (de caçada, de partilha de alimentos, de transmissão de nomes), dada a possibilidade de as relações jocosas, se excessivas, resultarem em desentendimentos, até as relações dentro da família, no seio da qual, entre outros motivos, a mulher podia instigar o homem pretendido a matar-lhe o marido, ou o filho matar o padrasto para vingar a morte do pai, assassinado por aquele (ECKERT; NEWMARK, 1980. p. 195-197).

Uma alternativa para as soluções violentas, era o duelo com cantos, em que um acusava o outro baseado em temas como a "hostilidade, avidez, inveja, preguiça, furto, pretensão, imodéstia, excesso sexual", enquanto faz seu auto-elogio, destacando sua boa natureza, modéstia, habilidade na caça, e suas boas intenções. Tal confronto seria totalmente desastroso, não fosse o ambiente ritual, festivo e cheio de humor em que ocorria, ou seja, isolado do contexto quotidiano. 

Também o trazer a audiência para seu lado era um recurso do cantor para não atuar como único acusador. Além do mais, apesar de contundente, a acusação se apresentava dentro de um ambiente de ambiguidade, em que a platéia podia estar se colocando a favor de uma das partes ou simplesmente apreciando o desempenho artístico; os ataques e contra-ataques podiam ser expressos em termos irônicos, permitindo assim serem interpretados como verdadeiros ou não. Os autores exemplificam os recursos retóricos utilizados pelos contendores transcrevendo trechos dos cantos anotados por Rasmussen (ECKERT; NEWMARK, 1980. p. 197-207). Enfim, o duelo restaurava a estabilidade da ambiqüidade, sempre passível de voltar a desequilibrar-se (ECKERT; NEWMARK, 1980. p. 208-209).


Rachel Attituq Qitsualik dirá:
O cosmos inuíte não é governado por ninguém. Não há uma figura divina seja maternal ou paternal. Não há deuses criadores do vento ou do Sol. Não há punição eterna na vida futura, assim como não há punição para crianças ou adultos na vida presente. Os inuítes acreditam que todas as coisas tem um tipo de espírito ou alma (em língua inuit: anirniq - respiração; plural anirniit) e não apenas os humanos. Estes espíritos continuam a existir após a morte. Como precisam comer animais e plantas existe um dito comum entre os inuítes: "O grande perigo de nossa existência repousa no fato de que nossa dieta consiste inteiramente de almas". Acreditando que todos as coisas tem uma alma, matar um animal não é muito diferente de matar uma pessoa. Uma vez que a alma do animal ou humano é liberada ela está livre para se vingar. Os espíritos dos mortos só podem ser aplacados pela obediência aos costumes, evitando os tabus e executando os rituais apropriados.

Ao pesquisar sobre o duelo de cantos inuíte, encontramos os seguintes vídeos feitos pelos dessendentes dessa cultura:


 






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