A professora Maria das Graças Vieira Proença dos Santos, é licenciada em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Sorocaba e em Letras pela Universidade de São Paulo. Curso de Pós-Graduação em Estética no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.
Uma arte utilitária
A Primeira questão que se coloca em relação à arte indígena é defini -la ou caracterizá la entre as muitas atividades realizadas pelos índios. Quando dizemos que um objeto indígena tem qualidades artísticas, podemos estar lidando com conceitos que são próprios da nossa civilização, mas estranhos ao índio. Para ele, o objeto precisa ser mais perfeito na sua execução do que sua utilidade exigiria. Nessa perfeição para além da finalidade é que se encontra a noção indígena de beleza. Desse modo, um arco cerimonial emplumado, dos Bororo, ou um escudo cerimonial, dos Desana podem ser considerados criações artísticas porque são objetos cuja beleza resulta de sua perfeita realização.
Outro aspecto importante a ressaltar: a arte indígena é mais representativa das tradições da comunidade em que está inserida do que da personalidade do indivíduo que a faz. É por isso que os estilos da pintura corporal, do trançado e da cerâmica variam significativamente de uma tribo para outra.
O período pré-cabralino: a fase Marajoara e a cultura Santarém
A Ilha de Marajó foi habitada por vários povos desde, provavelmente, 1100 a.C. De acordo com os progressos obtidos, esses povos foram divididos em cinco fases arqueológicas. A fase Marajoara é a quarta na sequência da ocupação da ilha, mas é sem dúvida a que apresenta as criações mais interessantes.
A fase Marajoara
A produção mais característica desses povos foi a cerâmica, cuja modelagem era tipicamente antropomorfa. Ela pode ser dividida entre vasos de uso doméstico e vasos cerimoniais e funerários. Os primeiros são mais simples e geralmente não apresentam a superfície decorada. Já os vasos cerimoniais possuem uma decoração elaborada, resultante da pintura bicromática ou policromática de desenhos feitos com incisões na cerâmica e de desenhos em relevo.
Dentre os outros objetos da cerâmica marajoara, tais como bancos, colheres, apitos e adornos para orelhas e lábios, as estatuetas representando seres humanos despertam um interesse especial, porque levantam a questão da sua finalidade. Ou seja, os estudiosos discutem ainda se eram objetos de adorno ou se tinham alguma função cerimonial. Essas estatuetas, que podem ser decoradas ou não, reproduzem as formas humanas de maneira estilizada, pois não há preocupação com uma imitação fiel da realidade. A fase Marajoara conheceu um lento, mas constante declínio e, em torno de 1350, desapareceu, talvez expulsa ou absorvida por outros povos que chegaram à Ilha de Marajó.
Fig. 1. URNA FUNERÁRIA
400 a 1400 A.D.
Cerâmica Marajoara; Ilha de Marajó; 53 cm
Com pintura em vermelho sobre fundo branco, apresenta o corpo profusamente decorado pela técnica da excisão, com variações em torno da figura humana estilizada e de motivos geométricos. Urnas funerárias elaboradas como esta, em geral contendo objetos de prestígio em seu interior, provavelmente destinaram-se a indivíduos de status social diferenciado na sociedade Marajoara.
Fig. 2. ESTATUETA FEMININA OCA EM FORMA DE FALO
400 a 1400 A.D. Cerâmica Marajoara; Ilha de Marajó; 23,5 cm
400 a 1400 A.D. Cerâmica Marajoara; Ilha de Marajó; 23,5 cm
Esta peça da Coleção Amazônica do Setor de Arqueologia sintetiza em uma mesma representação da figura humana os princípios feminino e masculino, um aspecto que pela sua recorrência parece ter tido particular relevância na cosmologia Marajoara. Apresenta o tronco e os membros inferiores recobertos de pintura corporal em motivos geométricos, na cor vermelha sobre fundo branco, com duas pequenas alças laterais e uma reentrância no pescoço para amarração e suspensão.
Fig. 3. TANGAS - 400 a 1400 A.D.
Cerâmica Marajoara; Ilha de Marajó; Altura média das três peças entre 11 e 12 cm
Pintadas em vermelho e preto sobre fundo branco, estes tapa-sexos femininos eram modelados individualmente, acompanhando a anatomia pubiana de suas portadoras. Padrões geométricos, muitos deles correspondendo a representações estilizadas da figura humana, preenchem seus quatro campos decorativos, que em alguns exemplares são reduzidos a apenas três. Enquanto a faixa superior varia pouco, a seguinte e também a inferior apresentam maior variabilidade. O campo central, maior, não se repete nunca. Apresentam em cada uma das extremidades orifícios para amarração, muitos deles desgastados pelo uso.
Cerâmica Marajoara; Ilha de Marajó; Altura média das três peças entre 11 e 12 cm
Pintadas em vermelho e preto sobre fundo branco, estes tapa-sexos femininos eram modelados individualmente, acompanhando a anatomia pubiana de suas portadoras. Padrões geométricos, muitos deles correspondendo a representações estilizadas da figura humana, preenchem seus quatro campos decorativos, que em alguns exemplares são reduzidos a apenas três. Enquanto a faixa superior varia pouco, a seguinte e também a inferior apresentam maior variabilidade. O campo central, maior, não se repete nunca. Apresentam em cada uma das extremidades orifícios para amarração, muitos deles desgastados pelo uso.
Fig. 4. PEÇA ANTROPOMORFA EM FORMA DE FALO
400 a 1400 A.D.
Cerâmica Marajoara Ilha de Marajó 13 cm
O corpo e a cabeça, que apresenta as típicas sobrancelhas em T, foram decorados com motivos geométricos feitos com a técnica da excisão.
Cultura Santarém
Não existem estudos dividindo em fases culturais os povos que ao longo do tempo habitaram a região próxima à junção do Rio Tapajós com o Amazonas, como foi feito em relação aos povos que ocuparam a Ilha de Marajó. Todos os vestígios culturais encontrados ali foram considerados como realização de um complexo cultural denominado "cultura Santarém".
A cerâmica santarena apresenta uma decoração bastante complexa, pois além da pintura e dos desenhos, as peças apresentam ornamentos em relevo com figuras de seres humanos ou animais.
Cerca de 1.000 a 1.400 A.D.
Cerâmica Santarém; Pará; 34 cm
A postura corporal, os lóbulos perfurados e outros ornamentos sugerem que este indivíduo que apresenta os membros atrofiados, especialmente os inferiores, tenha tido uma posição social diferenciada. Peça restaurada, com falo fraturado e ausente.
400 a 1400 A.D.
Cerâmica Marajoara Ilha de Marajó 13 cm
O corpo e a cabeça, que apresenta as típicas sobrancelhas em T, foram decorados com motivos geométricos feitos com a técnica da excisão.
Cultura Santarém
Não existem estudos dividindo em fases culturais os povos que ao longo do tempo habitaram a região próxima à junção do Rio Tapajós com o Amazonas, como foi feito em relação aos povos que ocuparam a Ilha de Marajó. Todos os vestígios culturais encontrados ali foram considerados como realização de um complexo cultural denominado "cultura Santarém".
A cerâmica santarena apresenta uma decoração bastante complexa, pois além da pintura e dos desenhos, as peças apresentam ornamentos em relevo com figuras de seres humanos ou animais.
Fig. 5. VASO ANTROPOMORFO REPRESENTANDO UM HOMEM SENTADO
Cerca de 1.000 a 1.400 A.D.
Cerâmica Santarém; Pará; 34 cm
A postura corporal, os lóbulos perfurados e outros ornamentos sugerem que este indivíduo que apresenta os membros atrofiados, especialmente os inferiores, tenha tido uma posição social diferenciada. Peça restaurada, com falo fraturado e ausente.
Figs. 6-7. CABEÇA DE ESTATUETA ANTROPOMORFA FEMININA
Cerca de 1.000 a 1.400 A.D.
Cerâmica Santarém; Pará 17 cm.
Com olhos fechados em forma de grãos de café, típicos da cultura Santarém, esta cabeça, que foi destacada do seu corpo, apresenta vários atributos: além de adornos auriculares, seu cabelo foi cuidadosamente penteado e ela porta um elaborado toucado constituído por um cobre-nuca e uma grinalda ornada com três cabeças de morcego de cada lado. Apresenta orifícios circulares nas narinas e nos ouvidos.
Um dos recursos ornamentais da cerâmica santarena que mais chama a atenção é a presença de cariátides, isto é, figuras humanas que apoiam a parte superior de um vaso.
Figura 8 - Vaso de Cariátides – Acervo MPEG Foto: João Aires da Fonseca
Figura 9 - Vaso de Gargalo – Acervo MPEG . Foto: João Aires da Fonseca
Além de vasos, a cultura Santarém produziu ainda cachimbos, cuja decoração por vezes já sugere a influência dos primeiros colonizadores europeus, e estatuetas de formas variadas. Diferentemente das estatuetas marajoaras, as da cultura Santarém apresentam maior realismo, pois reproduzem mais fielmente os seres humanos ou animais que representam.
A cerâmica santarena refinadamente decorada com elementos em relevo perdurou até a chegada dos colonizadores portugueses. Mas, por volta do século XVII, os povos que a realizavam foram perdendo suas peculiaridades culturais e sua produção acabou por desaparecer.
As culturas indígenas
Apesar de terem existido muitas e diferentes tribos, é possível identificar ainda hoje duas modalidades gerais de culturas indígenas: a dos silvícolas, que vivem nas áreas florestais, e a dos campineiros, que vivem nos cerrados e nas savanas. Os silvícolas têm uma agricultura desenvolvida e diversificada que, associada às atividades de caça e pesca, proporciona lhes uma moradia fixa. Suas atividades de produção de objetos para uso da tribo também são diversificadas e entre elas estão a cerâmica, a tecelagem e o trançado de cestos e balaios.
Já os campineiros têm uma cultura menos complexa e uma agricultura menos variada que a dos silvícolas. Seus artefatos tribais são menos diversificados, mas as esteiras e os cestos que produzem estão entre os mais cuidadosamente trançados pelos indígenas.
É preciso não esquecer que tanto um grupo quanto outro conta com uma ampla variedade de elementos naturais para realizar seus objetos: madeiras, caroços, fibras, palmas, palhas, cipós, sementes, cocos, resinas, couros, ossos, dentes, conchas, garras e belíssimas plumas das mais diversas aves. Evidentemente, com um material tão variado, as possibilidades de criação são muito amplas, como por exemplo, os barcos e os remos dos Karajá, os objetos trançados dos Baniwa, as estacas de cavar e as pás de virar beiju dos índios xinguanos.
A tendência indígena de fazer objetos bonitos para usar na vida tribal pode ser apreciada principalmente na cerâmica, no trançado e na tecelagem. Mas ao lado dessa produção de artefatos úteis, há dois aspectos da arte índia que despertam um interesse especial. Trata se da arte plumária e da pintura corporal, que veremos mais adiante.
A arfe do trançado e da tecelagem
A partir de uma matéria prima abundante, como folhas, palmas, cipós, talas e fibras, os índios produzem uma grande variedade de cestos, abanos e redes. Da arte de trançar e tecer, Darcy Ribeiro destaca especialmente algumas realizações indígenas como as vestimentas e as máscaras de entrecasca, feitas pelos Tukuna e primorosamente pintadas; as admiráveis redes ou maqueiras de fibra de tucum do Rio Negro; as belíssimas vestes de algodão dos Paresi que também, lamentavelmente, só se podem ver nos museus. Cerâmica
As peças de cerâmica que se conservaram testemunham muitos costumes dos diferentes povos índios e uma linguagem artística que ainda nos impressiona. São assim, por exemplo, as urnas funerárias lavradas e pintadas de Marajó, a cerâmica decorada com desenhos impressos por incisão dos Kadiwéu, as panelas zoomórficas dos Waurá e as bonecas de cerâmica dos Karajá. Plumária
Esta é uma arte muito especial porque não está associada a nenhum fim utilitário, mas apenas à pura busca da beleza. Existem dois grandes estilos na criação das peças de plumas dos índios brasileiros. As tribos dos cerrados fazem trabalhos majestosos e grandes, como os diademas dos índios Bororo ou os adornos de corpo, dos Kayapó. As tribos silvícolas como a dos Munduruku e dos Kaapor fazem peças mais delicadas, sobre faixas de tecidos de algodão. Aqui, a maior preocupação é com o colorido e a combinação dos matizes. As penas geralmente são sobrepostas em camadas, como nas asas dos pássaros. Esse trabalho exige uma cuidadosa execução.
Máscaras
Para os índios, as máscaras têm um caráter duplo: ao mesmo tempo que são um artefato produzido por um homem comum, são a figura viva do ser sobrenatural que representam Elas são feitas com troncos de árvores, cabaças e palhas de buriti e são usadas geralmente em danças cerimoniais, como, por exemplo, na dança do Aruanã, entre os Karajá, quando representam heróis que mantêm a ordem do mundo. A pintura corporal
As cores mais usadas pelos índios para pintar seus corpos são o vermelho muito vivo do urucum, o negro esverdeado da tintura do suco do jenipapo e o branco da tabatinga. A escolha dessas cores é importante, porque o gosto pela pintura corporal está associado ao esforço de transmitir ao corpo a alegria contida nas cores vivas e intensas. São os Kadiwéu que apresentam uma pintura corporal mais elaborada Os primeiros registros dessa pintura datam de 1560, pois ela impressionou fortemente o colonizados e os viajantes europeus. Mais tarde foi analisada também por vários estudiosos, entre os quais Lévi Strauss, antropólogo francês que esteve entre os índios brasileiros em 1935. De acordo com Lévi Strauss:
(...)as pinturas do rosto conferem, de início, ao indivíduo, sua dignidade de ser humano; elas operam a passagem da natureza à cultura, do animal estúpido ao homem civilizado. Em seguida, diferentes quanto ao estilo e à composição segundo as castas, elas exprimem, numa sociedade complexa, a hierarquia dos status. Elas possuem assim uma função sociológica. (apud, SANTOS, 2007, p. 129)
Os desenhos dos Kadiwéu são geométricos, complexos e revelam um equilíbrio e uma beleza que impressionam o observador. Além do corpo, que é o suporte próprio da pintura Kadiwéu, os seus desenhos aparecem também em couros, esteiras e abanos, o que faz com que seus objetos domésticos sejam inconfundíveis.
REFERÊNCIAS:
Figuras de 1 à 7. Acesso em: http://www.museunacional.ufrj.br/
Figuras 8 e 9. Acesso em:
SANTOS, Maria das G. V. P. dos. História da Arte. São Paulo: Ática, 2007.
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